O Cão
A ligação no dia recém-amanhecido. A entrada de supetão no escuro, o despertar em um susto, a inquietação na voz do outro lado da linha. “Mariana? Você está ouvindo?” - ela me perguntava. Com os olhos agora bem abertos, assimilava o entorno, focava. “Preste atenção”, ela recomeçou, “preste atenção”.
Olhei para quem me estendeu o telefone, a preocupação lhe percorria a face. As mãos, trêmulas, pressionavam o aparelho contra meu ouvido. A angústia de saber que algo ruim havia passado, mas aguardar a confirmação.
“O seu pai está bem”. Essas cinco palavras foram suficientes para libertar o medo que antes hesitava em se manifestar. O que aconteceu? Quando dei por mim já não estava mais no quarto. Sentada, encolhida na poltrona, questionava e esperava a resposta. “Fique calma. O seu pai está bem”.
A mente estava longe, numerando cada possível acontecimento, situando o sujeito e detalhando as margens de erro – ele estava viajando. “Sua madrasta ligou agora há pouco, eles sofreram um acidente na estrada”. Esse dia chegaria, era somente questão de tempo. A irresponsabilidade tem seu dia de cobrança.
O que aconteceu? O que aconteceu? “Eles estão em Presidente Prudente. Estava chovendo na estrada e seu pai bateu o carro quando foi desviar”. O que aconteceu? A urgência deixou tudo programado: sabia qual roupa vestir, a localização das chaves do carro e quantos minutos demoraria em sair de casa. O que aconteceu? Senti a camiseta molhada.
“O carro capotou e...”
O que aconteceu?
“Você sabe que seu pai não usa cinto e...”
A respiração me falhava. O que aconteceu?
“O carro capotou e ele foi atirado para fora, abriu a cabeça. Ele está internado”.
“Não, filha, não. Ela pediu para não ligar para lá. Não, você não vai até lá, seus tios já chegaram. Filha, fique calma”.
A impotência da distância, a ineficácia do plano. O que aconteceu? O cão.